sexta-feira, 25 de março de 2011

Quando falamos sobre o meu pai, conversamos com um público muito grande. Não apenas porque ele tinha muitos amigos e ficamos agradecidos de ver boa parte deles aqui, mas também pelo fato de ele ter sido um grande agregador de pessoas. Meu pai acreditava muito nas pessoas. Ele compreendia que todas elas podiam contribuir com o crescimento das empresas em que trabalhou, dos jornais onde escreveu, do país onde viveu. Ele dava igual atenção a um estudante de 18 anos que lhe pedia conselhos na profissão e aos ministros de Estado com quem conversava sobre assuntos da República. Ele atendia os focas pelos corredores das redações e os executivos com a mesma esperança e afinco. Ele era, sobretudo, um formador de pessoas e de corações.
Nos últimos dias, que foram bastante difíceis para a gente, recebemos várias mensagens dessas pessoas que ele tratou com carinho, que deu o melhor para que elas sigam em frente nas suas vidas, buscando o sucesso. Uma delas, hoje uma importante editora de jornal, me revelou que, quando ela era uma foquinha, meu pai estava no topo do jornal e, mesmo assim, ele parava para ouvi-la, atendê-la, comentar as notícias e dar conselhos sobre as matérias.
Nos seus anos de jornal, quando ainda éramos pequenos, raramente conseguíamos jantar com meu pai, pois a noite sempre foi hora de fechamento. Mas, sempre soubemos que podíamos contar com ele para tudo. Os fins de semana eram dedicados para a gente. Para sair e ouvir histórias, ouvir músicas, dar risadas. E voltar para casa, jogar cartas, futebol de botão, tocar piano, cozinhar e comer bem.
Um dia – e isso aconteceu há anos –, soubemos que ele precisava contar com a gente. Minha mãe pediu para um de nós buscá-lo antes de um de seus milhares de fechamentos. De início, foi estranho, pois ainda não era noite e ele costumava chegar tarde em casa. Então, soubemos que aquele seria o último dele na Gazeta Mercantil, um jornal que ele gostava muito e que ajudou a montar.
Fui buscá-lo e, a cada momento em que chegava a hora de ir embora, ele voltava para falar com alguém. Ele estava verdadeiramente emocionado por sair do jornal. Parecia que queria conferir a próxima edição, como fazia todos os dias. Acho que não queria sair daquele ambiente de notícias. Após, entrar e sair da redação repetidas vezes, começou a chorar, desceu correndo as escadas e, ao entrar no carro, disse num tom um pouco mais apressado: “Toca o carro! Vamos sair daqui!”
Na época, pensei: Meu pai é mesmo um homem de notícias. Alguém que adora jornais e vive deles. Mais tarde fui entender que meu pai era um pouco mais do que um homem de notícias. Ele era um homem de liberdade.
A liberdade de expressão sempre foi muito cara a ele. Preso três vezes pela ditadura, aprendeu a dar valor não apenas à liberdade física, de ir e vir, mas também à liberdade de ideias.
Quando tudo rumava para que ele fosse preso por uma quarta vez, em 1975, logo após a morte de Herzog, nosso avô Ovídio comprou passagens para que ele, sua mulher e filhos fossem para a França para viver no exílio. Pois meu pai recusou as passagens e trocou Paris por Brasília. Ele foi viver no olho do furacão, o mais próximo possível do poder, em plenos anos 70, lutando, com textos, edições e ideias contra um regime de força e de armas. Meu pai não acreditava nas armas como forma de se conseguir a liberdade. Ele acreditava nos pensamentos, na força da ideias e na comunicação.
Mas, o que era, para ele, a comunicação? Na semana passada, estava buscando lembranças de meu pai e encontrei, num caderno antigo, anotações que fiz de uma palestra que ele me convidou para ir, ainda no começo dos anos 90. O tema era a comunicação. E ele começou a palestra definindo-a. Fiquei mesmo muito surpreso, pois, durante o mestrado em comunicação, um professor pediu para que procurássemos nos livros de jornalismo definições de comunicação. Surpreendentemente, os alunos verificaram que poucos autores definem esse campo tão importante para a vida, para a sociedade, apesar de muitos escreverem sobre ele.
Naquele caderno, estava a definição de meu pai. Para ele, a comunicação é a estratégia de sobrevivência das pessoas. Ela faz parte do modo pelo qual as pessoas procuram se organizar para viver melhor. Por isso, a liberdade de expressão sempre foi tão importante para ele. Sem liberdade de expressão, não há comunicação. E sem comunicação, as pessoas não conseguem viver em sociedade.
Após ler aquelas anotações, fiquei pensando onde meu pai aprendeu tantas coisas. Fui buscar mais informações sobre ele e encontrei uma lista de livros indicados por ele ao curso Abril na internet. Rapidamente, notei que conhecia e havia lido praticamente metade de sua lista. Mas, a outra metade não e isso me intrigou. Afinal, ele sempre comentava sobre os livros que gostava com a gente. Aquela metade desconhecida era de livros estrangeiros e novos. Como eu não os conhecia? Comecei a duvidar a respeito desses livros e até me questionei se ele havia realmente lido todas aquelas obras. Então, fui ao seu escritório e encontrei-os, atrás de sua cadeira, com anotações, todos riscados, todos exaustivamente lidos. E para que? Para que ele pudesse passar algo do que estava nos livros para outras pessoas.
De fato, nosso pai buscava sabedoria para transmiti-la para as outras pessoas. Era generoso e extremamente altruísta.
A Abril era para ele mais do que uma editora. Era uma empresa de valores e princípios, onde ele exercitava a sua liberdade. Era onde ele transmitia essa mensagem de que todos têm direito à informação. Não apenas de recebê-la, mas, sobretudo, de divulgá-la livremente. E de que essa divulgação de informações deve ser feita com a responsabilidade do bom jornalismo. O Jornalismo que ouve o outro lado, que controla a arrogância e o orgulho, que é tolerante, mas também vivo, simples, intimista e preciso. O Jornalismo que ele falava é todo permeado sob uma perspectiva ética. Sem ética, não há valores. E sem valores, não há jornalismo. Sem jornalismo, não há democracia. Sem democracia, não há liberdade.
Acho que devemos esse jeito generoso e cavalheiro dele ao seu pai, ao nosso avô Ovídio, que sempre recebia as pessoas de portas abertas, que atendia os entregadores e os executivos com a mesma atenção. À sua mãe Cecília, sempre pronta para sorrir de felicidade, com as travessas cheias de molhos de macarrão, quando chegávamos na sua casa. Ao seu irmão Enéas, que era o rei das festas, animando a todos por onde passava. Um tio capaz de pegar os seus sobrinhos ainda crianças e levá-los para grandes aventuras, saindo de carro até a praia, com a lancha em direção ao alto mar. À sua irmã Odelis, que é capaz de parar tudo se alguém da família está precisando de ajuda. É uma irmã-companheira que ficou ao seu lado em todos os momentos de sua vida. É uma tia-companheira que nos ajuda muito com suas conversas e presença. A ela, meu pai costumava dizer: “Desde quando a gente precisa se falar para saber o que o outro pensa”.
E também à nossa mãe, Beth, que faz de sua vida um ensinamento diário de generosidade. A Beth que é a outra metade do Sidnei. A Beth que faz parte da gente, a mãe em nosso coração.
Foi esse universo particular do Sidnei que gerou para todos os seus amigos o seu jeito carinhoso, o seu companheirismo. Ele sempre buscava agregar e se empenhava em criar as condições para isso. A casa vivia em reformas para receber melhor os amigos e a família, em almoços e jantares deliciosos. Crescer nesse ambiente de carinho e de celebração da vida foi, para nós, um privilégio.
E, se não teve filhas, adotou várias. Quantas vieram nos procurar nos últimos dias para dizer que ele foi um verdadeiro pai para elas. Ao longo dos anos, nós aprendemos a dividir esse carinho. Não importava quanto o trabalho e as obrigações tomassem o seu tempo, ele sempre encontrava brechas para dar atenção às pessoas queridas. Aliás, acho que podemos revelar aqui um segredo particular do Sidnei aos colegas da Abril. Sempre que ia a Brasília, com uma agenda cheia de compromissos de trabalho, ele usava o pouco tempo livre para visitar os netos. Com Lucas, de 4 anos, ele brincava de montar trilhos de trem, uma de suas paixões de infância. Num de seus últimos filmes, ele enfileirava trilhas de dominós com o pequeno Lucas. Uma de suas últimas sequências de fotos foi feita numa imensa banheira. Era ele com Thales, de quase 2 anos, brincando na água, disputando quem sorri mais alto. Nesses dias, ele voltava a ser criança. Era um amigão do Lucas e do Thales, assim como o velho Ovídio pedia que a gente não o chamasse de avô, mas de Amigão.
Pois muito do que nosso pai aprendeu veio de sua família, uma família de imigrantes. Quando pequeno, Sidnei ouviu um importante conselho de sua tia Rosa. Ainda criança, ele se viu diante do desafio de aprender inglês num curso que demoraria sete anos. Sete anos, naquela época era muito: mais da metade do que ele havia vivido. Pois a Dona Rosa lhe disse: os sete anos vão passar de qualquer jeito, você pode estudar ou não.
Ele levou essa lição e soube passá-la para a gente. Quando tínhamos algum problema, ele sempre perguntava: “E agora, o que você vai fazer? Qual é o próximo passo?”
Nosso pai era um homem a se realizar. Ele sempre estava procurando mais. Olhava sempre para diante. Fazia do futuro o seu presente. Como uma amiga o definiu: “Aparentemente tão racional, era no fundo um italiano dado a sonhos”.
E, agora, sem ele aqui, nós nos perguntamos: Como faremos?
Nós recebemos muitas mensagens de carinho sobre meu pai. De que ele foi um civilizador, um homem de caráter, de que foi um mestre, ou simplesmente um homem de bem. Um homem de notícias. Um homem de liberdade. Um homem de valores. Um homem de princípios. 
Quando perdemos um pai, parece que ficamos sem chão. É como se a orientação nos sumisse e, de repente, ficamos sem aqueles conselhos, aquelas boas conversas sobre qual rumo seguir. Mas, pai, hoje, sabemos que essa orientação permanece. Ela é muito grande e foi dada por você. Sabemos que a sua lição foi a de sermos generosos, gentis com as outras pessoas, éticos na profissão e na vida. Que temos que procurar fazer o bem. Que esse bem não é apenas para nós mesmos, que o bem deve ser buscado, sobretudo, para os outros para que possamos viver melhor em conjunto, em sociedade. Aprendemos a procurar a nossa paixão e fazer dela um ofício. Ou como você gostava de dizer: “Faça do ofício a sua paixão!”
Muito obrigado a todos! Um forte abraço!

(Texto lido na Paróquia São Domingos, em São Paulo, em 22 de março de 2011, na missa de 7º dia de meu pai, Sidnei Basile)